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O esporte está no DNA?

 (Foto: Otávio Silveira)

Usain Bolt vencerá os 100 e os 200 metros rasos nas Olimpíadas do Rio de Janeiro em dois anos. Se não for ele, será outro jamaicano. É uma aposta fácil: nos últimos dois Jogos Olímpicos, os velocistas da Jamaica ficaram com 7 das 12 medalhas disputadas nas modalidades — e sempre conseguiram o ouro. Na categoria feminina, 8 das 12 medalhas foram para as jamaicanas. Marcas assim num país tão pequeno (a população é equivalente à da cidade de Salvador) estimulam a uma discussão entre os cientistas: as pessoas nascem talhadas para serem campeãs ou treinando duro qualquer um pode chegar lá?

A ideia de que treinar é suficiente ganhou força em 2008 com o lançamento do livro Fora de Série – Outliers, do jornalista britânico Malcom Gladwell. A obra defende o “número mágico” de 10 mil horas: o que as pessoas pensam se tratar de talento inato não passa da manifestação dessas horas de treinamento. Em seu livro, Gladwell cita uma pesquisa de 1993 do psicólogo Anders Ericsson, na Academia de Música de Berlim. Com ajuda dos professores, ele dividiu alunos violinistas em três grupos: os que tinham potencial para se tornarem solistas de nível internacional, os considerados bons e os que dificilmente chegariam a tocar como profissionais. Aos 20 anos, os do primeiro grupo haviam praticado 10 mil horas; os bons, 8 mil horas; e os classificados com menor habilidade, 4 mil horas.
A favor da teoria de Gladwell, Ericsson não encontrou no grupo alguém que atingiu a excelência sem praticar muito, tampouco um aluno que mesmo tendo praticado o suficiente não ficou entre os melhores. A ideia logo foi extrapolada ao terreno esportivo pelo neurologista Daniel Levitin, da Universidade McGill, no Canadá. “Em um estudo após o outro, de compositores, jogadores de basquete, esquiadores, pianistas, jogadores de xadrez, esse número sempre ressurge. Parece que o cérebro precisa desse tempo para assimilar tudo que é necessário”, escreve em Música no Seu Cérebro, a Ciência de Uma Obsessão Humana.

A tese ganhou tanta influência que apareceu gente disposta a largar tudo para testar o “número mágico”. Foi o que fez o ex-fotógrafo americano Dan McLaughlin em abril de 2010, quando decidiu tornar-se golfista profissional. Aos 30 anos, nunca tinha completado uma partida do esporte. Mas, em sua cabeça, o que o separava dos profissionais do PGA Tour (o circuito profissional do golfe americano) eram 10 mil horas de prática. Até o fechamento deste texto, ele havia praticado 5 mil horas (veja acima). McLaughlin está sendo acompanhado por Ericsson, o autor da teoria das 10 mil horas, que espera colher uma prova definitiva para a sua tese.

FADA DO BASQUETE

Talvez ninguém contrarie mais a regra das 10 mil horas que o mais novo aliado do ditador coreano King Jong-un, o ex-jogador de basquete Dennis Rodman. Na infância, ele era menor que as irmãs mais novas, estrelas do time de basquete da escola. E não dava para a coisa: era desajeitado, não conseguia fazer uma cesta sequer. Rodman tinha desistido do esporte e arrumado subempregos até que, “de uma hora para outra”, passou de 1,75 m para 2,03 m.

No livro The Sports Gene (O Gene do Esporte, ainda sem edição em português), de David Epstein, a transformação de Rodman é descrita como se a “fada do basquete deixasse a habilidade de fazer cestas debaixo de seu travesseiro à noite”. O próprio Rodman mal podia acreditar na transformação pela qual havia passado apenas por ter aumentado de tamanho e musculatura. “É como se eu tivesse um novo corpo que soubesse fazer tudo que o antigo não conseguia.” Rodman se tornaria, ao lado de Scottie Pippen e Michael Jordan, multicampeão da NBA com o Chicago Bulls, e seria imortalizado no Hall da Fama do Basquete.

Rodman é uma mostra de que, pelo menos na NBA, a altura faz toda a diferença, apesar da presença ocasional de baixinhos. De acordo com os cálculos de Epstein, a chance de um homem entre 1,82 m e 1,88 m entrar na NBA é de 5 em um milhão. Se ele tiver até 1,93 m, a probabilidade é quatro vezes maior. Agora, se sua altura estiver entre 2,08 m e 2,13 m de altura, são 6.400 vezes mais chance de participar da liga. Na verdade, de cada seis homens com 2,13 m de altura, é bem provável que um já esteja na NBA. Mas quais são os genes que regulam a altura? O melhor estudo sobre o assunto, publicado em 2010 na respeitada revista científica Nature Genetics, conseguiu determinar apenas 45% da variação em adultos — achar todos os genes vai levar muito mais tempo do que os cientistas esperavam.
Mas se é difícil identificar as marcas genéticas da altura, os genes que podem predizer se uma pessoa vai se dar bem nos exercícios foram investigados por um dos maiores estudos do gênero já realizados. Batizado de Heritage, a pesquisa submeteu 481 participantes a cinco meses de exercícios em bicicletas estacionárias, três vezes por semana, em intensidades crescentes, tudo controlado em laboratório. Também coletou o DNA de todos os participantes.

Um dos objetivos era descobrir quais genes determinavam a capacidade aeróbica da pessoa — a quantidade de oxigênio que alguém usa durante a pedalada ou a corrida. Quanto maior o uso de oxigênio, mais resistência a pessoa tem. Depois de quatro anos reunindo e analisando os dados, notou-se que pessoas da mesma família tendiam a apresentar melhorias semelhantes. Em 2011, o grupo divulgou ter identificado 21 variantes genéticas que predizem a capacidade. Quem tinha ao menos 19 variantes melhorou sua capacidade aeróbica três vezes mais do que os que tinham menos que 10 variantes.

GENE DA VELOCIDADE

Há um gene, porém, totalmente identificado com a velocidade. Ele responde pela produção da proteína alfa-actinina3(ACTN3). A partir de 1999, a geneticista Kathryn North, da Universidade de Sydney, começou a investigar uma mutação nesse gene que inibia a produção da proteína. Kathryn colheu DNA de quem mais tem músculos de contração rápida: corredores de elite. Os resultados foram reveladores: quase nenhum dos corredores apresentava a mutação (ou seja, todos tinham produção da ACTN3, o que ajuda na explosão muscular). Após publicar seu estudo, outros cientistas ao redor do mundo reproduziram o trabalho em seus países e encontraram os mesmos resultados: corredores não possuem essa mutação.
Um dos locais onde isso aconteceu foi na Unesp, em Bauru, onde pesquisadores estão verificando a presença dessa proteína em atletas da categoria de base do São Paulo Futebol Clube. “Atletas que não possuem a mutação saltam mais e são mais velozes do que os que a possuem”, afirma o pesquisador Thiago Dionísio. Os resultados ainda devem ser divulgados, mas outro trabalho brasileiro, do fisiologista da equipe de futebol do Cruzeiro, Eduardo Pimenta, também encontrou relações referentes a esse gene. Segundo ele, os jogadores da equipe que têm mais ACTN3 são mais velozes. Já os que não fabricam a proteína costumam ser mais lentos, mas suportam exercícios por períodos mais longos.

Para além de explicar a explosão muscular, a genética começa a se intrometer no papel da dedicação ao treinamento. Sobre isso, não faltam frases como a de Wayne Gretzky, um dos maiores jogadores de hóquei de todos os tempos, que dizia que “talvez não tenha sido talento que Deus tenha me dado, e sim a paixão”, ou exemplos como o do campeão mundial de boxe Floyd Mayweather Jr., conhecido por acordar no meio da noite e forçar sua equipe a acompanhá-lo a uma academia. Mas acontece que toda essa motivação pode ser mais que apenas força de vontade. Um estudo feito em 2006 com 37.051 irmãos gêmeos de sete países, publicado no respeitado periódico científico PLOS ONE, concluiu que de metade a três quartos da quantidade de exercício que uma pessoa pratica pode ser atribuída à herança genética, enquanto outros fatores, como o acesso a uma academia,têm baixa influência.

E OS JAMAICANOS?

No início deste texto, damos como favas contadas a vitória de um jamaicano nas Olimpíadas do Rio. Mas ainda resta saber por que aquela pequena ilha no Caribe produz tantos campeões em série. Há duas histórias que podem explicar o fenômeno. A primeira diz respeito a seus ancestrais, escravos guerreiros de Gana e da Nigéria, que se rebelaram assim que chegaram à ilha. Em 1738, os escravos massacraram as tropas britânicas que tentaram invadir os domínios rebeldes. A teoria advinda dessa história é que a seleção já começava na África, quando eram vendidos os mais fortes. A história é bonita, mas estudos genéticos não confirmam a lenda.

Uma explicação melhor está no fato de que praticamente toda a população jamaicana tem o gene ACTN3 sem a mutação, o que os faz ótimos corredores. Mas outras ilhas caribenhas possuem a mesma composição genética e nem por isso produzem tantos corredores. Quando YannisPitsiladis, biólogo da Universidade de Brighton, comparou duas dúzias de variantes genéticas ligadas à corrida entre corredores jamaicanos e um grupo controle, ele achou mais “genes certos” nos jamaicanos, mas “não dramaticamente”. Um dos estudantes de graduação de Pitsiladis, usado no grupo controle, tinha mais variantes de corrida “que UsainBolt”, por exemplo.
Polêmica semelhante envolve os corredores quenianos, que costumam dominar maratonas em várias cidades do mundo (incluindo a São Silvestre, em São Paulo). Uma série de estudos verificou aspectos da estrutura física deles que podem ajudar, mas não há consenso entre os pesquisadores e nem evidências claras de um papel predominante da genética ali. Contribui para a indefinição o fato que a corrida de longa distância é extremamente popular por lá.

A posição de boa parte dos cientistas hoje fica, portanto, no meio do caminho: tanto os corredores da Jamaica quanto os quenianos podem se beneficiar de uma combinação entre genética e popularidade do esporte. O estádio nacional de Kingston, por exemplo, costuma ficar lotado com 35 mil pessoas em competições de jovens atletas, com campeões olímpicos circulando entre o público. Em algum momento, toda criança ou adolescente disputa as corridas juvenis no país. As faculdades locais dão gordas bolsas de estudo para os melhores — até maiores que algumas nos EUA. A corrida é o futebol da Jamaica, e do meio dos milhares de novos talentos, eles encontram seus novos UsainBolts.

DE RUIM DE BURACO A GOLFISTA PROFISSIONAL?
Fotógrafo largou tudo em 2010 para se dedicar a 10 mil horas de prática
 (Foto: Divulgação)


Após ler dois livros a respeito das supostas 10 mil horas de prática que levariam uma pessoa à excelência em qualquer área, o fotógrafo Dan McLaughlin resolveu largar tudo em 2010 para colocar a tese à prova. Sem nunca ter completado uma partida de golfe antes, ele passou a treinar com o objetivo de entrar, ao final das 10 mil horas, no PGA Tour, a liga profissional do esporte nos EUA.
Passou a ser acompanhado pelo psicólogo Anders Ericsson, o autor da teoria das 10 mil horas, e ganhou apoio da Nike, que fornece o material esportivo. Dan mantém registros detalhados de seus treinos no site thedanplan.com. Após 4 anos, ele acaba de passar as 5 mil primeiras horas e estima que, no ritmo atual, deva terminar a sequência de treino em 2019, quando tiver 39 anos.

Do começo até agora, ele melhorou seu handicap (indicador do golfe que mede o nível do jogador: quanto menor, melhor). O índice foi 12 para 2,8 — o necessário para disputar uma vaga no PGA Tour é ter menos de 2, mas a evolução final é a mais difícil (veja abaixo).

 (Foto: Revista Galileu)

NATURALMENTE DOPADO
Medalhista olímpico teve ajuda da genética
 (Foto: United Archives)

Nas Olimpíadas de Inverno de 1964, na Áustria, o finlandês EeroMäntyranta venceu a corrida de esqui cross-country de 15 quilômetros 40 segundos à frente do segundo colocado, uma margem nunca igualada. O esquiador, considerado uma lenda do esporte, ganharia sete medalhas na carreira, três delas de ouro.

Muito tempo depois, em 1993, cientistas encontraram quantidade anormal de hemoglobina no seu sangue (veja ao lado). Como ele possuía muito mais glóbulos vermelhos, seu sangue era capaz de carregar 50% mais oxigênio, uma vantagem e tanto para reduzir o cansaço em esportes de longa duração. O responsável por isso é uma mutação genética no gene EPOR. O efeito dela é semelhante ao do hormônio eritropoetina, aquele injetado pelo ciclista Lance Armstrong quando ele foi pego no antidoping e banido do esporte. O caso acendeu um debate sobre o quanto o esporte, mesmo sem dopping, é realmente justo.

 (Foto: Revista Galileu)

Fonte: Galileu